A MATINTA PERÊRA DA BOA ESPERANÇA

Ilustração: Railson Wallace

Era ano de 1972, Igarapé-Miri era uma cidade pequena, mas aconchegante, o povo vivia da produção rural e da pesca.  Apesar de pequena, a cidade era bem arborizada o que durante o dia, fazia com as ruas ficassem cobertas por sombras, e principalmente no largo  (hoje Praça Sarges Barros), as noites ficavam mais escuras devido ao grande número de árvores frutíferas que deixavam as ruas mais bonitas, porém nas noites de inverno quando a chuva predominava na maior parte do dia e da noite, o aspecto do Largo e das ruas ao redor, assumiam uma paisagem assombrosa, causando medo aos moradores que precisavam se deslocar durante a noite.

Uma das travessas da cidade, que até hoje tem o nome de Quintino Bocaiuva, se estendia até 3 ruas em direção ao fim da cidade acabando na rua Padre Vitório, que passa em frente ao Cemitério Bom Jesus do Passos, dali em diante passa a se chamar de Estrada Alves Teixeira que tem um quilômetro de distância e foi feita para dar acesso à Boa Esperança onde era realozada  a tradicional festividade de Santa Maria e findava a cidade.

Na estrada Alves Teixeira, depois da rua Padre Vitório, a mais ou menos duzentos metros, morava a família de um carpinteiro de nome Pedro, que era casado com uma senhora de uns 50 anos de idade conhecida como Ana, e já tinham uns três filhos, sendo dois homens e uma mulher.

Era mês de Março e a chuva castigava nossa pequena cidade, nessa época as crianças não podiam usufruir do melhor espaço que tinham para brincar e jogar futebol, que era o Largo (atual Praça Sarges Barros), espaço onde tudo acontecia, pois lá estavam localizados, o Grupo Escolar, a Prefeitura, os Correios, o SESP, o Cartório, etc.

Este espaço também era cruzado por muita gente que se dirigia pra trabalhar, para ambos os lados da cidade, porém o Largo ficava intrafegável durante aquela época, pois no inverno, surgiam uma grande quantidade de olhos d´água e a areia que cobria a maior parte do espaço ficava mole, quando alguém tentava atravessar, se atolava até o joelho. A maior parte das pessoas que atravessavam diariamente o Largo nessa época, tinham que dar uma volta grande para chegarem aos seus destinos.

Na estrada Alves Teixeira, logo na entrada, cerca de uns 200 metros onde morava o casal Pedro e Ana, moravam também várias famílias, incluindo a do senhor Sr. Antônio, um homem de uns 50 anos de idade, que era pai do jovem Marçal, que devia ter uns 20 anos na época, e exercia a profissão de padeiro junto com o seu amigo Altino nas dependências do Círculo Operário.

Os dois todos os dias, saíam por volta de meia noite, ou 01:00h da madrugada em direção ao Círculo Operário que ficava localizado atrás da Casa Paroquial, onde ficam agora, vários pontos comerciais pertencentes à Paróquia de Sant'Ana de Igarapé-Miri, e lá no Círculo funcionava a única padaria que tinha na cidade.

Dona Ana estava gestante de uns 7 meses, seu marido trabalhava no interior de Igarapé-Miri, ele viajava segunda-feira e só voltava na sexta. Foi em uma noite de quinta para sexta, que Altino se preparava para ir para a padaria e ao chamar o Marçal que estava com febre e não podia ir, então Altino pegou a sua garrafa de café e saiu de casa para trabalhar, eram duas horas da manhã e ele já estava atrasado, fechou a porta, quando ouviu um choro de criança bem baixinho, que lhe chamou a atenção. Estranhou, pois no perímetro em que morava não tinha nenhuma criança recém nascida.

No início pensou tratar-se de um gato mas ao apurar o ouvido identificou que o estranho choro vinha da casa da frente, que era justamente a casa de Dona Ana, lembrou-se porém que ela havia comentado com a vizinhança que estava com 7 meses de gestante, na dúvida resolveu averiguar se o bebê não havia nascido prematuro.

Como o Sr. Pedro estava trabalhando para o interior e não estava na casa, Altino então se dirigiu até o outro lado da rua para escutar melhor. Ventava muito forte e frio, então o jovem aproximou o ouvido da parede da casa de Pedro, e se deparou com a porta da frente apenas encostada, empurrou de leve e bateu palma para chamar alguém, porém ninguém respondeu, e ele resolveu entrar nas pontas dos pés para não acordar as crianças menores.

O choro continuava, era um choro abafado, e ao chegar na porta do quarto que estava entreaberta, empurrou bem devagar e não avistou ninguém, tinha apenas uma rede atada, onde notou um volume de onde partia o choro. Curiosamente se dirigiu até a rede e ao abrir ficou petrificado de horror, ali dentro estavam as vísceras de uma pessoa e no meio de tudo daquilo, estava um feto que imediatamente parou de chorar, pálido ainda constatou que se tratava de uma criança do sexo feminino.

Suando em plena madrugada, Altino saiu da residência de Pedro, e ao chegar na rua, viu algo passar na escuridão, parecia voar, a noite era muito escura, aquele vulto emitiu um assovio tão forte que deixou Altino meio surdo, imediatamente todo arrepiado, atravessou a rua e entrou correndo em sua casa muito assustado. Sua esposa acordou e ele disse que tinha visto algo muito terrível, mas que não podia contar a ninguém, vendo o desespero do marido sua mulher conhecida por Luzia, resolveu acompanhá-lo até o Círculo Operário, pois ele estava com medo demais para ir sozinho.

Altino não parou de pensar no que viu e cada vez que lembrava, sofria calafrios. Após terminar o dia de trabalho, no fim da tarde, Altino então se dirigiu até a casa de Dona Merá, uma senhora de uns 70 anos, muito religiosa e que era devota de São Sebastião em cuja festa, na procissão durante a noite, cada um dos acompanhantes acendia uma Poronga (lamparina artesanal, alimentada por querosene que ficava acesa durante o cortejo), para que ela explicasse o ocorrido. Tia Merá como era conhecida, após ouvir o relato, explicou a Altino que se tratava de uma Matinta Perêra, e que Ana tinha herdado o fado de seus antepassados. Avisou também que ele deveria ter muito cuidado, pois ela poderia se vingar, o assombrando.

Na madrugada de sexta-feira, Altino e Marçal não foram trabalhar, com medo da vingança da Matinta Perêra. No sábado pela manhã, ao abrir a janela, avistou Pedro que vinha saindo de casa, saiu também da sua, chamou Pedro e perguntou:

- Pedro, você já sabe se o filho que Dona Ana espera, é menino ou menina?

Pedro respondeu:

- Não, mas a parteira disse que é um menino.

Diante da resposta de Pedro, Altino fez a seguinte colocação:

- Amigo eu posso apostar que é uma menina.

Nisto Dona Ana que estava na janela, olhou sério em direção a Altino e ele voltou a sentir calafrios, como se estivesse vendo aquelas vísceras dentro da rede naquela noite macabra. Pedro notando que algo estava acontecendo, disse:

- Vai pra dentro, Ana.

Depois que ela entrou, então Pedro perguntou o que estava acontecendo e Altino sempre dizia que não estava acontecendo nada. Pedro chegou até a insinuar que estava sendo traído pelos dois, começando a aumentar o volume de sua voz, foi então que Altino resolveu contar o que tinha visto naquela noite de terror.

Pedro não acreditou, porém combinou com Altino de viajar na segunda-feira e antecipar sua volta para sexta de madrugada. Na segunda, Pedro viajou e antes confirmou com o amigo que voltaria na sexta. De madrugada por volta de uma hora, Altino acordou Marçal,  que tinha dificuldade de se comunicar pois gaguejava muito e piscava sem parar, deu-lhe a garrafa de café e a lanterna, abrindo em seguida o guarda-chuva para proteger os dois, já que começava a chover bem fininho.

Saíram andando colados com a lanterna acesa apontada pra frente, vinham sem nada falarem, dobraram o canto em direção ao Grupo, e já estavam em frente ao Palacete da prefeitura, quando ouviram um assovio muito forte e um farfalhar de asas produzidos por um vulto, como se fossem de um grande pássaro sinistro que estava bem perto dos dois, o susto foi tão grande que o Marçal além de gago ficou mudo e com os olhos arregalados. Jogou a garrafa e a lanterna pra longe, indo parar em baixo do bacurizeiro, em seguida disparou numa carreira em direção à sua casa na estrada da Boa Esperança, de onde tinha acabado de vir. 

Altino pensando na vingança da Matinta, correu em direção ao Círculo Operário e lá chegando, jogou-se em cima dos sacos de trigo, sendo acudido pelo ajudante que já havia chegado e que vendo o estado em que se encontrava o seu chefe,  pediu socorro aos vizinhos, acordando várias pessoas, que ajudaram o padeiro a se recompor.

Depois de calmo, Altino explicou aos presentes que havia sido perseguido por uma Matinta Perêra e que queria saber onde estava o Marçal, pois após o assovio, não viu pra onde ele teria corrido. Os presentes se entreolharam e resolveram juntamente com Altino, ir atrás do Marçal. Como a lanterna tinha sido jogada longe durante a fuga, cada um pegou uma lamparina e seguiram em direção ao Largo, onde tinha acontecido a aparição.

Parecia um cortejo fúnebre, todos calados e temendo a todo instante, avistarem a tal Matinta. Ao chegarem em baixo do Bacurizeiro, frondoso como sempre e que ajudava a tornar ainda mais escura aquela noite de horror, procuraram e não avistando nada no local, gritaram várias vezes pelo Marçal, e não obtendo resposta alguma, resolveram ir até à sua casa que ficava ao lado da casa de Altino, que murmurava baixinho:

- A desgraçada resolveu se vingar.

A madrugada era gelada e ventava muito, ao se aproximarem da casa de Marçal, notaram uma pequena aglomeração de pessoas na porta, e ao se chegarem, foram questionados pelos presentes, todos queriam saber o que tinha acontecido. Ao entrar na casa, Altino olhou para o Marçal que  estava pálido, olhos arregalados e respirando com dificuldades, sentado em uma cadeira sendo amparado e abanado por seu vizinho que também gaguejava, porém explicou com dificuldades, que todos foram acordados com um grito medonho e ao abrirem as janelas avistaram a figura de um homem que vinha em desabalada carreira, e que só reconheceram que se tratava do Marçal, quando aquela figura se aproximou.

De repente ouviram um barulho na porta de entrada e todos se voltaram e se depararam com uma mulher toda molhada, era Dona Ana, vizinha da frente da casa do Marçal. Altino sentiu novamente o mesmo olhar tétrico daquela mulher, que olhando para ele perguntou:

- O que houve?

Atino então explicou a todos o que tinha acontecido e olhando para Dona Ana, pensava que só de atravessar a rua, não dava para ela se molhar daquele jeito que estava, ela só podia ser a Matinta Perêra que havia atacado ele e seu amigo. Em fim Marçal se livrou do choque em que tinha mergulhado durante o ataque daquele ser sinistro e começou a querer falar, mas ninguém aguentou esperar e todos se retiraram para as suas casas.

Os dias foram passando e finalmente chegou sexta-feira, até este dia, Altino não viu mais sua vizinha Dona Ana, nesta noite por precaução, Altino resolveu dormir cedo, porém com muita curiosidade pela chegada de Pedro e a possibilidade de talvez ver resolvido aquele mistério que já estava deixando-o maluco, durante a madrugada Altino não dormiu mais, ficou sem sono pois estava apreensivo demais.

De repente ouviu vozes como se estivessem discutindo, levantou-se e foi até a janela, abriu um pouquinho somente o que dava para olhar para a rua, olhou no seu relógio de pulso que marcava 4 horas, olhou para a rua nas duas direções e estava deserta e escura, as vozes continuavam se fazer ouvir e vinham da direção da casa de Pedro e Ana, então sentiu medo, fechou a janela e foi deitar-se novamente para esperar amanhecer.

De manhã bem cedinho, Altino espantou-se com baques na porta da frente de sua casa, estranhou, porém levantou-se para atender e ao abrir a porta deparou-se com Pedro que estava com olheiras e com a fisionomia cansada como quem não dormiu a noite inteira, deu-lhe bom dia e pediu para que ele entrasse, Pedro sentou-se em uma cadeira, estava pálido, parecia um cadáver e olhando para Altino, disse:

- Meu vizinho, quero lhe agradecer por ter me alertado, o que mais o senhor sabe da minha mulher?

Altino relatou mais uma vez tudo que havia visto naquela noite macabra em que entrou na casa de Ana ao ouvir o choro de criança, e explicou porque já sabia que o sexo da criança que iria nascer, era feminino. Pedro então relatou que ao chegar mais cedo do que Ana esperava, também encontrou as vísceras da sua mulher abandonadas na rede e aguardou que ele chegasse do seu fado para pedir explicações, então começaram a discutir.  

Pedro resolveu  mudar-se para Belém com toda a família aproveitando para pedir segredo ao vizinho. No mesmo dia, a família toda viajou deixando a casa fechada e somente depois é que foram levadas as bagagens e nunca mais voltaram para Igarapé-Miri.

A casa existe até os dias de hoje.

Material cedido pelo Sr. Gelfson Lobo (Professor Gel).

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