A LENDA DO AÇAÍ DE IGARAPÉ-MIRI

Ilustração: Railson Wallace

No Brasil, muito antes de Cabral por aqui chegar, existia uma tribo indígena que vivia muito feliz. Itaoca era um índio que sonhava tornar-se guerreiro, e chegava a hora de fazer os seus testes.

Jovem belo, de força invejável, calmo e bondoso, tinha a pele queimada pelo sol, que mostrava um moreno com bastante brilho. Seus olhos e cabelos eram negros como noites sem lua. Itaoca havia resistido a todas as provas para se tornar guerreiro.

O abraço das “tataíras”, uma das mais dolorosas provas, deixou marcas profundas no guerreiro.

Essa prova era realizada na presença dos pais e demais jovens da aldeia. Todos sentados no chão, de frente para o candidato, em silêncio profundo, assistiam a tudo, bebendo sumo de ervas que os embriagava. O chefe da tribo ordena que o jovem candidato seja amarrado com Envira forte em um tronco fino, com os braços e as pernas presos, deixando-o totalmente imóvel no tronco. Seu peito descoberto de qualquer proteção recebe um milharós com mamangabas e tataíras. A dor é indescritível, mas o jovem terá que suportar a prova, desde o nascer do sol até seu poente. De vez em quando, um membro da tribo abandona a roda onde está sentado observando e vai ao milharós agitá-lo. Com esse gesto, as tataíras voltam a enfiar seus ferrões no peito do candidato que se contorce em dor, sem emitir nenhum som. Logo o candidato não suporta e desmaia. Balbucia algumas palavras ao retornar, sem gemer sequer, para não perder a prova.

Quando o sol começa a se pôr, os observadores do no guerreiro dançam e gritam, anunciando a vitória do candidato. Então, o cacique juntamente com alguns jovens vai até o candidato e o levam para sua oca. 

Sendo cuidado por seus pais, passa sete dias comendo e bebendo bastante, sem ver e falar com ninguém que não seja seus pais e irmãos.

Itaoca passou também pela prova das ferozes abelhas, mas o mergulho do poraquê foi mais doloroso. Nessa prova, o candidato terá que lutar com um enorme poraquê, quando muitos morrem por não suportar o choque liberado pelo peixe. Os dois rolam pelo fundo do igarapé, observados pelo chefe e juízes. O forte Itaoca vence mais essa prova.

Uma particularidade destacava Itaoca de seus irmãos de tribo: e passava horas em igarapés.

Chegou o dia de Itaoca ser apresentado ao seu povo como grande guerreiro. Seu peito, braços e mãos, marcados pelas ferradas ainda sangravam, mesmo assim o guerreiro foi apresentado à tribo.

Todos dançavam ao som do boré e dos tambores feitos de troncos de árvores com couro de animais. Mais de cem índios, todos nus, usavam colares, brincos e penachos coloridos de grande beleza. Cantavam e dançavam, esperando o grande guerreiro chegar.

Jovens índias, de 16 a 20 anos, idade do casamento das mulheres da tribo, também espreitavam pelas fendas das suas ocas. Cinco belas jovens estavam à disposição do novo guerreiro, que após passar três noites e três dias com elas, agora ele teria que caçar para alimentar aquela que seria sua esposa. Mas Itaoca preferiu partir e buscar sua esposa em outra tribo.

Depois de muito andar mata à dentro, Itaoca encontra uma nova aldeia. Era uma tribo Caraíba dos Mutuãs do rio Jamundá. Itaoca fora bem recebido pelo cacique daquela tribo, pois o seu guerreiro estava à beira da morte. Certo dia, o guerreiro estava à beira de uma cacimba, quando conheceu uma linda jovem. Era Jaci, a filha única do morubixaba. Por sua beleza, era bastante cortejada por guerreiros que ali passavam. O cruel e temido Iruçu preparava-se para as provas em uma tribo vizinha, era um jovem muito mau, e por não obter sucesso ao tentar conquistar Jaci, jurava matar todos que dela se aproximassem. Suas juras eram como castigo para o resto da vida.

Jaci ao ver Itaoca, se apaixonou e o aceitou em casamento.

Ao saber disso, Iruçu fez uma jura: mataria Itaoca e seus descendentes. Iruçu tinha poderes maléficos, e seu juramento aos pés de uma árvore no por do sol, chegou aos ouvidos de Itaoca, assim como chegou também a notícia de que Iruçu havia decapitado vários inimigos com suas próprias mãos. Além de mau, Iruçu era forte, ligeiro e grande conhecedor das lutas indígenas. 

Na aldeia, a festa estava se realizando enquanto Itaoca saíra para caçar para Jaci e seus pais. Iruçu exercia poderes sobre o pajé daquela aldeia, coisa que ninguém sabia. Ele não estava na festa, pois havia saído para atender ao chamado do malvado Iruçu.

A noite passou e quando o sol começou a chegou à aldeia, trouxe consigo também Itaoca, que em suas costas carregava uma enorme capivara. A alegria aumentou e todos participaram daquele apetitoso quadrúpede que fora servido como um grande banquete.

Era costume naquela aldeia, se alguma criança nascesse com deficiência física, seja qual fosse ela, que a impedisse de realizar suas atividades habituais, como qualquer membro da comunidade, seria penalizado pelo pajé, com castigos que iam desde isolamento, ou seja, afastamento das outras crianças, até a amputação do membro doente. Se a criança nascesse muda ou cega, teria seus órgãos (língua e olhos) arrancados, quando completasse a idade de dez anos. Esses órgãos seriam enterrados a fim de evitar que o mal se espalhasse pela tribo.

Sentindo que a situação se agravava, Itaoca não queria que sua esposa sofresse vendo a luta dos dois. Assim, resolveu partir daquela aldeia para bem longe e levou consigo sua esposa amada.

Os pais de Jaci choraram muito sua ida, mas entenderam que era necessário a sua partida para a felicidade dos dois. A noite chegou e os dois sumiram mata adentro, rumo à sua nova morada. 

Abençoado pelo Deus Tupã, Itaoca chegou a uma terra à beira de um igarapé. Chamou Jaci para ver o rio, abraçou sua esposa e disse: 

- “Igarapé-Miri”.

Ali inicia a sua nova casa. Ele imediatamente cava uma cacimba, pega água para beber e aproveita para levar todas as tardes Jaci, para olharem admirados o reflexo de seus corpos na água cristalina. É um namoro, ali riem e recordam quando se conheceram à beira da cacimba do pai da moça.

A terra era muito farta de caças, peixes e muitas frutas.

Meses depois, livres da crueldade de Iruçu, Itaoca e jaci já esperavam por seu primeiro filho, ou filha. O pai queria um menino para ensinar-lhe todas as artes de um verdadeiro guerreiro e também para dar continuidade no domínio da comunidade. Itaoca acreditava estar começando ali uma grande tribo e o futuro guerreiro se chamaria Mirim-Muru.

Jaci teve três filhas o que deixava Itaoca bastante triste por não ver o seu sucessor que comandaria o seu povo. Os anos passaram. Vários casais de outras tribos foram chegando e se unindo a eles, e a tribo já contava com mais de dez famílias. As filhas de Jaci e Itaoca já estavam todas com maridos, duas até engravidaram. A comunidade vivia feliz, mas itaoca era um homem muito triste pela falta de um filho guerreiro.

Certo dia Jaci deu-lhe a notícia de que estava prenha novamente. Os meses passaram e a criança nasceu. O pajé que atendia aquela tribo era o mesmo controlado por Iruçu. Era um feiticeiro de mão cheia, que além de fazer grandes maldades àqueles que não queriam bem, tinha poderes para descobrir onde a pessoa estava na imensa floresta. Foi assim que conseguiu chegar à tribo de Itaoca.

Com suas mandigas conseguiu ser aceito por Jaci para massagear diariamente sua barriga com ervas que prometia defesa para o bebê no ventre materno. Foi nessas massagens que o feiticeiro usou o seu poder maléfico para prejudicar Mirim-Muru. O tempo passou e ele abandonou aquele povo, sem que ninguém soubesse que rumo teria tomado.

Distante dali, o perverso Iruçu aguardava a chegada do pajé. Apesar da sua força e do alto reconhecimento das lutas guerreiras, o malvado Iruçu não conquistou o posto de guerreiro que tanto sonhava, e isso aumentou seu ódio o seu ódio sobre Itaoca, mas ele temia o desafio da luta, pois se perdesse esse combate estaria arrasado e teria que sumir da tribo, por isso e por ser altamente covarde e traiçoeiro, planejava acabar com Itaoca.

Os anos passaram e Mirim-Muru caminhava para a idade de nove anos, momento esperado pelo pajé para a ação do seu feitiço.

Com a frequente presença na aldeia do já morubixaba Itaoca, o pajé começou o pajé começou a pôr em prática o plano maléfico de Iruçu. A aldeia era bastante farta e crescia a cada lua.

Mirim-Muru já saía para caçar. Era um garoto diferente, muito ágil e astucioso, sempre esperado com as melhores caças e cestos de vários frutos. Admirado por seus irmãos e querido por seus pais e pela comunidade, gozava de grande privilégio.

Certa tarde Mirim-Muru saiu para caçar. A noite chegou e o garoto não voltou. Antes que o dia amanhecesse Itaoca partiu em busca do curumim querido. Duas noites se passaram até encontrar o garoto aos pés de uma árvore, com algumas sementes em suas mãos. Ao lado pelos de guará. O pai do menino imaginava que o curumim estivesse morto, abraça-o, tira o menino do chão e dá um alto grito de desespero. Pássaros voam sem rumo, animais correm alucinados, árvores estremecem.

O cacique cai de joelhos com o garoto desfalecido nos braços. Na aldeia todos esperam aflitos, enquanto uma rasga-mortalha corta próxima a oca de Mirim-Muru, mostrando seu dorso, solta um grito horripilante e some. Jaci entende como um agouro. Seu coração acelera fortemente e ela se põe a chorar.

Uma feitiçaria foi colocada na aldeia e a desgraça começou.

Mirim-Muru chega desfalecido nos braços de seu pai. Jaci olha nos seus olhos e entende que o menino ainda vive, só não sabe que uma desgraça maior os espera mais a frente.

Jaci usa folhas e sumo de cascas na testa do menino que arde em febre. A tristeza fez morada em todas as casas da aldeia. Três dias depois o curumim balbucia algumas palavras o que fez a sua mãe sair correndo desesperada em busca do marido. Mirim-Muru abre seus grandes olhos negros, agora totalmente negros sem nenhuma visão. O garoto está cego.

As caças foram sumindo, as frutas também. O rio que abastecia de peixes e mariscos foi secando, se acabando, assim como o morubixaba Itaoca se acabava no fundo de uma rede. Jaci carregava no colo seu ultimo filho, Ita-Pucê de apenas dois anos de idade.

A fome tomava conta da aldeia. Em consequência, as doenças vinham exterminando as famílias. Era a promessa de Iruçu que se cumpria. 

Todos temiam que a cegueira de Mirim-Muru passasse para seus filhos ou familiares e esperavam que seu pai fizesse o que era costumeiro na aldeia, portanto, teria que arrancar-lhe os olhos.

Mirim-Muru completa 10 anos. É chegada a hora do grande sacrifício. Itaoca entra na choupana onde está o filho querido e na mão leva uma tigela de barro onde irá pôr os olhos do filho para serem jogados bem longe da aldeia, a fim de evitar que a doença se propague. Jaci aguarda chorando do lado de fora.

Dois gritos marcam o momento triste. O pai introduz os dedos polegar e indicador e arranca os olhos do curumim. Cabisbaixo, chorando, sai cambaleando. Entrega a tigela de barro com os órgãos e vai silencioso para dentro da mata. Em prantos jaci carrega a tigela enquanto toda a tribo acompanha-a olhando de longe.

Jaci vai até as margens de um igarapé, senta-se e começa a cavar com os dedos, duas covas rasas onde deposita os olhos do filho amado.

Todo dia Jaci ia ao mesmo local e chorava muito. Suas lágrimas caíam em cima das duas covas rasgando-as. Depois de algum tempo, Jaci observou que nas covas brotaram duas pequenas plantas. Ela continua regando-as com suas lágrimas, enquanto as plantinhas iam crescendo.

Na aldeia a fome aumentava e a fraqueza dos corpos também. Algumas mortes já haviam acontecido em função dessa triste situação.

Passaram-se dois anos de muita escassez, Jaci se lembra de Mirim-Muru e decide visitar as duas árvores que nasceram dos olhos do filho. Ao chegar, observa que os cachos cheios de pequenos frutos daquelas árvores estão sendo comidos por Tucanos, sabiás, macacos, e os que caem são saboreados por pacas, cotias, e outros animais. E as sementes largadas pelos arredores, agora já são novas árvores, todas carregadas daqueles frutinhos pretos e saborosos. Jaci observou também que ao roer aqueles frutos que deixavam sua boca pintada com uma cor roxa, sentia-se alimentada e sem fome.

Imediatamente Jaci levou o marido para ver o igarapé. Ele não sabia onde os olhos de seu filho estavam enterrados e não queria saber para não ter maior tristeza. Ali chegando Jaci deu alguns caroços daquela fruta para ele provar. Ele gostou muito do sabor e também se sentiu alimentado. Ao saber da história dos olhos do seu filho, contada pela esposa, Itaoca chamou toda a tribo à beira do Igarapé e ordenou que todos apanhassem os frutos para alimentar-se e os caroços deveriam ser replantados para alimentar mais povos.

Todos estavam felizes com aqueles frutos e comiam alegremente, enquanto Itaoca dizia:

- Este fruto nasceu dos olhos do meu guerreiro Mirim-Muru, por isso se chamará açaí, que quer dizer: “fruto bom, que mata a fome do povo”.

O sol ia se pondo e todos voltaram para a aldeia com a esperança de que no dia seguinte pudessem ajuntar mais frutos para alimentar-se.

Daí pra frente não houve mais fome naquela aldeia, nem nas da região, pois o açaí, resultado de um grande sacrifício, serviu para abastar as mesas dos povos indígenas e também dos civilizados. Hoje esse fruto é apreciado em todo o mundo.

Aquela terra onde Itaoca construiu a sua aldeia cresceu grandiosamente, mas o nome dela permanece até hoje: Igarapé-Miri, hoje a Capital Mundial do Açaí.


Retirado do livro: A Lenda do Açaí de Igarapé-Miri(A Capital Mundial do Açaí) de Dorival Galvão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário